quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Caros miniaturistas

O Ritchie lançou-me uma questão/desafio bastante significativo: já andava com esta questão na minha cabeça há um tempo antes do longo interregno e ainda se mantém.
O mérito de todo este discurso vai ser da minha Biblia, o livro de Nuno Madureira: Lisboa 1740 - 1830. Cidade: Espaço e Quotidiano. Lisboa: Livros Horizonte, 1992. É nele que me debruço SEMPRE para me inspirar, para saber como fazer, para conhecer um pouco mais dos interiores das habitações lisboetas na época. É imprescindível porque traz em anexo inventários de casas: o nº de divisões e a mobilia nelas existente. Deixo ao autor a minha homenagem!!

Que tipo de palácio é o Palácio da Planeta Agostini? Que época, que mobiliário, que habitantes, etc?

O mote de inspiração da Planeta Agostini foram os palácios franceses da 2º metade séc. XVIII... Eu diria que é uma ideia que vendeu bem, mas não tem correspondência nenhuma com a realidade. Basta ir a França para sabermos que isto não é assim. Há um aparato decorativo e uma dimensão esmagadora que o nosso palaciozinho, acanhado e medíocre, não tem. Estes foram os motivos que me fizeram inverter o rumo dos trabalhos para uma coisa mais à moda portuguesa, uma vez que o fausto francês seria impraticável.

Começamos pelo problema do nº de divisões. 8 divisões nos finais séc. XVIII não é um palácio, nem um palacete. É uma casa normal, da burguesia. Um T1 de agora.
Os palácios tinham muitas, muitas divisões: quanto mais salas se atravessam, maior é a importância da pessoa que se visita. Quanto mais salas a pessoa tem, mais prestigio social.

A nossa casinha:
Não tem piso térreo (cocheiras, cavalariças, palheiros, instalações para criados e  moços).
Depois os andares são bem modestos: uma divisão de entrada que dá acesso a uma "biblioteca" e a uma Sala de Música. Muito humilde. Eu diria mesmo paupérrimo. No piso seguinte a mesma situação: uma cozinha para a preparação de refeições (devia de ter o dobro ou o triplo do tamanho para guardar as arcas salgadeiras, as arcas dos cereais, a pipa do vinho, os alguidares de escaldar a loiça...faltaria a despensa, onde se guardavam os alimentos como os queijos e os presuntos, o açucar e o mel, os condimentos e cuja chave estava com as patroas ou governantas). Como área intermédia uma divisão para fazer refeições colectivas e ao lado uma pequena saleta para receber as visitas (que deveria estar onde é a Sala de Música...).
Os "quartos" ou mais correctamente, as câmeras, na mansarda: que desprestigio. E as instalações não eram para um casal, mas para uma pessoa só. Para cada membro do casal: Câmara para dormir (vestir e fazer a toilete) e antecâmera (para receber, fazer refeições, jogar). O casal só dorme junto em camadas muito baixas do ponto de vista da hierarquia social. Lembrem-se do nosso querido Saramago e do Memorial do Convento: no ritual do Rei a ir dormir com a Rainha... quantas divisões atravessava, que aparato. E finda a função, não dormiam juntos, que horror, mas cada um em seus quartos/aposentos/câmaras...

Outro mau pormenor: Qual quartos de crianças ao lado dos pais? Isso é uma invenção séc. XX. Quem tomava conta das criancinhas eram as amas de leite...Não estão a imaginar uma duquesa a levantar-se a meio da noite para ir amamentar a sua descendência, pois não?

Conclusão: neste projecto da Planeta Agostini está quase tudo errado.
A coisa que me ocorre depois deste texto (e de vos aborrecer tanto...) é que o mais importante é definir quem vive na casinhota e com quem... E em que década?

Uma porção da mobilia pertence à primeira metade do séc. XVIII , a outra pertence à segunda metade: principais tendências são as linhas curvas, os dourados (cama e tremós), mas as pernas acabrioladas das cadeiras (sala de jantar, mas também as pernas do cravo) dão lugar às linhas rectas (cadeiras sala de música). Conclusão: a casinhota tem de ser da 2º metade séc. XVIII para se poder encaixar toda a mobilia sem problemas, até por causa do par de tremós, muito em voga nas últimas décadas de Setecentos.
Até aqui, os azulejos, quer do hall, quer da cozinha, não chocam.

Mas já perceberam que um dos aspectos mais importantes agora é definir - quem vive na casinhota?
Pelo tipo de direcção, instalações e decoração geral, eu aposto na casa de uma viúva de um desembargador, que após a sua morte teve de se mudar para uma residência mais modesta, talvez ainda da família... Classe média alta, sem filhos, duas câmaras (quartos) para a viúva, o Salão de Chá para os fins de tarde com as amigas e familiares, a Sala de Música a atestar serões de outros tempos, a Casa dos Livros herdeira da primitiva, maior e mais espaçosa, onde o marido trabalhava e fazia os serões e recebia os funcionários e guardava o dinheiro. Ficou a mobilia e os livros de Direito e um ou outro romance da senhora.

O par de móveis de conter que estão no hall, em pau preto, pertenciam à familia e por isso foram ficando, secundarizados pelas mobilias mais leves das divisões mais nobres, em particular pelos tremós. Ainda me faltam mais assentos, em particular assentos colectivos, como o canapé, que a par dos tremós estava mesmo na moda nesta época. Assim fica o rumo do meu casinhoto definido e que vai pautar as próximas opções. A secretária pequena, que é de senhora, vai para a câmera e não para a Casa dos Livros, que deverá ter uma mesa de trabalhos mais masculina. As porcelanas da China azuis e brancas estavam bem na moda, bem como as pratas e a faiança da Fábrico do Rato. Os grandes pratos de aranhões eram da avó da senhora viúva do desembargador, que com este tamanho de casa tem de ter duas criadas ao seu dispor: uma a cozinhar e a outra a limpar e a fazer recados... Nunca leram o Primo Basilio, do Eça? Apesar de retratar a sociedade lisboeta 80 anos depois, dá um bom retrato....

Vamos ver se tem coerência com tudo o que tenho feito e planeio fazer.
Ufa, desculpem tão longo discurso e ainda por cima redigido sem o acordo...Agora calo-me.

3 comentários:

Ricardo Pereira disse...

Nem me fales da porcaria do acordo! Adorei a maneira como fizeste a identificação contando a história... envolveu-me totalmente. Depois tens de dar um amiré ao meu para eu poder saber a que realidade pertence. Adorei!

Ana Anselmo disse...

Depois de ler tudo...o que posso dizer, concordo e não concordo , e passo a explicar:
Segundo a minha opinião,uma casa em miniatura, deste tipo, é ou pretende ser uma representação de uma época e não obviamente uma réplica fiel da realidade. Afinal nem a Casa de Bonecas da Rainha Mary, em todo o seu esplendor, o é. Ou seja para representar certos palácios ou castelos. mesmo à escala 1/12 seria necessário um espaço imenso. Isto não quer dizer que não se tente fazer uma representação tão realista quanto possível, e nesse aspecto, por exemplo a disposição dos quartos, salas etc deverá respeitar tanto quanto possível a da época, visto que tal é reflexo do modo de vida , da sociedade etc.
Considerando estas limitações e o facto de estarmos a falar de um kit, e não de uma casa desnehada de raiz para ser um palácio de determinada época, eu acho que este está muittíssimo conseguido!

C. Fernandes disse...

Cara Ana

O meu problema é que ando enrolada com o rigor histórico: tudo no meu projecto gira em torno disso...
Uma época - os finais do séc. XVIII - em Lisboa, mas as áreas são tão pequenas e tão limitadas que há muito pouco para fazer no campo do tal rigor. E depois, o mais complicado: a mobília disponível para comprar é quase sempre do séc. XIX, ou agora, já temos algumas opções séc. XVII e nunca é de inspiração portuguesa. Temos sempre as duas grandes tendências: a francesa e a inglesa. E nós?